por Isabela
Cavalcante no Metropoles
A tenista Serena
Williams escancarou os dados relacionando racismo e mortalidade materna nos
EUA. No Brasil, a realidade não é diferente
Serena Williams emocionou os
seguidores de suas redes sociais após falar das dificuldades sofridas no
pós-parto. A tenista, de 36 anos, deu a luz ano passado a sua primeira filha
e quase morreu devido a uma embolia pulmonar.
Ao tentar alertar os médicos, a americana foi tratada com descaso até
conseguir o devido tratamento. A situação motivou a atleta a divulgar sua
história e falar sobre racismo e as estatísticas de mortalidade no parto.
A atleta disse que teve sorte de ter
acesso à saúde de qualidade, diferente de outras mulheres negras. “Os médicos
não nos escutam, para ser franca. Talvez esteja na hora de ficarmos
confortáveis em ter conversas desconfortáveis. Tem muito preconceito na
situação, isso precisa ser resolvido”, contou.
Nos Estados Unidos, mulheres negras têm três vezes mais chances de
morrerem devido ao parto. No Brasil, 60% das vítimas de mortalidade
materna são negras (pretas e pardas) e 34% são brancas, segundo o Ministério da
Saúde. Os números refletem o óbito durante a gravidez, o parto e o aborto.
“Apesar do sistema não legalizar o
racismo, sua prática tem como premissa atender mulheres de forma diferenciada
por conta da cor da pele”, aponta Emanuelle Goés, enfermeira, doutora em
saúde pública, dona do blog População Negra e Saúde e colunista
do Blogueiras Negras. Os mitos de que negros
toleram mais dor e não podem ser tocados porque são “sujos” continuam presentes
nas universidades, segundo a doutora.
O racismo possui raízes antigas, mas
continua sendo repassado com os ensinamentos do “pai da ginecologia”, J Marion
Sims. “Ele abria mulheres negras grávidas para fazer experimentos, realizava
cesáreas sem anestesia. Existe essa história já construída e ela faz parte
do processo de como uma pessoa negra é atendida no sistema de saúde”,
conta Emanuelle. Várias mulheres operadas por Sims morriam também devido à
infecções, porque ele não prescrevia cuidados pós-cirúrgicos.
“As estatísticas demonstram uma
violência institucionalizada. Mulheres negras são privadas do direito e do
acesso à saúde. Isso se aplica à população negra em geral, mas é mais latente
com as pretas e pardas, em particular”, diz Rebeca Campos Ferreira,
doutoranda em antropologia e perita em antropologia no Ministério Público
Federal. Para ela, os dados são desumanizadores por tratarem de
mortes evitáveis e demonstrarem um genocídio.
Em seus trabalhos de campo em comunidades quilombolas, Rebeca relata ter ouvido muitas histórias de abuso e violência obstétrica. “Escuto mulheres negras falando terem ouvido, durante o trabalho de parto: ‘na hora de abrir as pernas não doeu'”, conta. “Uma jovem dizia ter sido duramente agredida verbalmente por uma enfermeira, foram ditas coisas como ‘deu para branco e não deve nem saber quem é o pai’, ‘essas pretas dão para todo mundo’. Precisamos pensar também sobre a supersexualização da mulher negra”.
As agressões não ocorrem só no
momento do parto. Estaticamente, essas mulheres têm menos acesso a
cuidados pré-natal e recebem menos anestesia. Um pouco mais da metade das
grávidas negras realizam as sete consultas indicadas durante a gestação,
revelou um artigo da Universidade Federal de Minas
Gerais. Cerca de 62% das pretas e pardas atendidas pelo Sistema
Único de Saúde (SUS) foram orientadas sobre amamentação, enquanto 78% das
brancas receberam esse serviço, segundo pesquisa do Ministério de Saúde.
“A intersecção das
discriminações de gênero e cor pioram o acesso aos serviços de saúde
reprodutiva. O racismo causa mais morte materna, impacta no número de
grávidas adolescentes e diminui o conhecimento sobre os métodos
contraceptivos”, fala Emanuelle. “Ainda não se sabe o que acontece
com as mulheres negras durante o pós-parto, há um grande índice de morte ligada
ao puerpério, isso deve ser investigado”, diz a doutora.
Rebeca explica que existem
instrumentos legais para garantir igualdade, mas na prática isso é diferente.
“A execução fica prejudicada pelo racismo e pelo machismo. Enquanto não
houver clareza, não serão tomadas medidas para mudar essa realidade. É preciso
enfrentar que o racismo na saúde existe e mata, é preciso conscientizar e
capacitar os profissionais da área”.
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